No início da minha vida profissional, senti-me atraído em tratar
crianças, me entusiasmei com a oncologia infantil. Tinha, e tenho ainda hoje,
um carinho muito grande por crianças. Elas nos enternecem e nos surpreendem com
suas maneiras simples e diretas de ver o mundo, sem meias verdades. Nós médicos somos treinados para nos sentirmos
‘deuses’. Só que não o somos! Não acho o sentimento de onipotência de todo
ruim, se bem dosado. É este sentimento que nos impulsiona, que nos ajuda a
vencer desafios, a se rebelar contra a morte e a tentar ir sempre mais além. Se
mal dosado, porém, este sentimento será de arrogância e prepotência, o que não
é bom. Quando perdemos um paciente, voltamos à planície, experimentamos o
fracasso e os limites que a ciência nos impõe e entendemos que não somos
deuses. Somos forçados a reconhecer nossos limites!
Recordo-me com emoção do Hospital do Câncer de Pernambuco, onde dei meus
primeiros passos como profissional. Nesse hospital, comecei a freqüentar a
enfermaria infantil, e a me apaixonar pela oncopediatria. Mas também comecei a
vivenciar os dramas dos meus pacientes, particularmente os das crianças, que
via como vítimas inocentes desta terrível doença que é o câncer. Com o nascimento da minha primeira filha,
comecei a me acovardar ao ver o sofrimento destas crianças. Até o dia em que um
anjo passou por mim.
Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada porém por
dois longos anos de tratamentos – os mais diversos, hospitais, exames,
manipulações, injeções e todos os desconfortos trazidos pelos programas de
quimioterapias e radioterapia.
Mas nunca vi meu anjo fraquejar. Já a vi chorar sim, muitas vezes, mas
não via fraqueza em seu choro. Via medo em seus olhinhos algumas vezes, e isto
é humano! Mas via confiança e determinação. Ela entregava o bracinho à
enfermeira e com uma lágrima nos olhos dizia: faça tia, é preciso para eu ficar boa.
Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei meu anjo
sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta que ainda
hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.
Meu anjo respondeu: “Tio, às vezes minha
mãe sai do quarto para chorar escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho
que ela vai ficar com muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer,
tio. Eu não nasci para esta vida!”
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem seus
heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei: “E o que a morte representa para você, minha querida?”
“Olha tio, quando a gente é pequena, às vezes,
vamos dormir na cama do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em
nossa própria cama, não é?”
Lembrei que minhas filhas, na época com 6 e 2 anos, costumavam dormir no
meu quarto e após dormirem eu procedia exatamente assim. “É isso mesmo, e então?”
“Vou explicar o que acontece”, continuou ela: “Quando nós dormimos, nosso pai
vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa cama, não é?”
“É isso mesmo querida, você é muito esperta!”
“Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu
vou dormir e o meu Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida
verdadeira!”
Fiquei ‘entupigaitado’. Boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado com
o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento acelerou, com a
visão e grande espiritualidade desta criança, fiquei parado, sem ação.
“E minha mãe vai ficar com muita saudade minha”, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço,
perguntei ao meu anjo: “E o que saudade significa para
você, minha querida?”
“ Saudade é o amor que fica!”
Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um a dar uma definição
melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o amor que fica!
Um anjo passou por mim...Foi enviado para me dizer que existe muito mais
entre o céu e a terra, do que nos permitimos enxergar. Que geralmente,
absolutilizamos tudo que é relativo (carros novos, casas, roupas de grife,
jóias) enquanto relativizamos a única coisa absoluta que temos, nossa
transcendência.Meu anjinho já se foi, há longos anos. Mas me deixou uma grande
lição, vindo de alguém que jamais pensei, por ser criança e portadora de grave
doença, e a quem nunca mais esqueci. Deixou uma lição que ajudou a melhorar a
minha vida, a tentar ser mais humano e carinhoso com meus doentes, a repensar
meus valores.
Hoje, quando a noite chega e o céu está limpo, vejo uma linda estrela a
quem chamo “meu anjo”, que brilha e resplandece no céu. Imagino ser ela,
fulgurante em sua nova e eterna casa.
Obrigado anjinho, pela vida bonita que teve, pelas lições que ensinaste,
pela ajuda que me deste. Que bom que existe saudades! O amor que ficou é eterno.
Realmente um verdadeiro Anjo de DEUS !
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